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A FANTASMAGORIA DO NÃO LUGAR (ou 5 notas sobre Atopias)  

 

“é a própria realidade que está em jogo”.          

André Breton

 

I / Desde a mesma pré-história, quando o feitiço pela expressão iconográfica de animais podia faz parte de um primitivo imaginário da natureza humana (Werner Herzog se aproximou em seu recente filme Caverna dos sonhos esquecidos, 2010 a esse abismo representativo), até a representação em iluminuras medievais ou na pintura apocalíptica de Hieronymus Bosch, ou mais recentemente, na tradução de bestiários mais próximos, seja de Goya, Max Ernst, Wilma Martins, Nelson Leirner, Regina Silveira, Damien Hirst, Nadir Ospina ou Sidney Philocreon, a história e a simbologia dão fé desta atração/mutação pelos animais, pela sua projeção tão atrelada a nosso imaginário mais atávico. Esta dedicação muitas vezes respondeu a impulsos alegóricos, que antes da contemporaneidade –e ser cifrado por Craig Owens como característica pós-moderna– permeou outras épocas, em especial, as variações do barroco já transcendentais: La alegoría no es más / que un espejo que traslada / lo que es con lo que no es (…), diz um poema de Calderón de la Barca.

 

Numa época em que cada vez tem menos valor o espaço, já devorado pelo tempo e, a sua vez, este deglutido pela velocidade –que tão facilmente converte tudo em sucata temporal–, estas atopias paisagísticas de Thereza Salazar se apresentam como paradoxos espaciais, cenografias de outros “não lugares”, bem diferentes daqueles designados por Marc Augé como emblemáticos de nosso tempo –tão populosos e urbanos como anônimos ou sem identidade–, ainda que os da artista também coincidam na marcada ficcionalidade. Com suas atopias estamos no paraíso da incerteza, na fantasmagoria do não lugar, em outros cenários, tão lendários como futuríveis. Não em vão, o procedimento utilizado pela artista aqui, tanto em relação com o material quanto a estratégia é oriunda da colagem e da fotomontagem, recursos que sempre souberam colocar de pernas para o ar todas as coisas, sobretudo das certezas mais padronizadas, subvertendo o ideário da superfície e outorgando estranheza ontológica ao local re-configurado, a suas características trocadas.                

II / O que vemos e pressentimos aqui são paisagens derivadas, de segunda geração, procedentes de representações gráficas e editoriais diversas (de culturas e destinos vários), e nas quais, sintomaticamente, prima a ausência do gênero humano. Landscapes, de por si, estranhos, ignotos ou herméticos, desérticos de vida mas também paisagens em estado de efervescência da natureza (fumaça ou lava de vulcão, territórios espaciais, interplanetários...), que ganham surpreendentemente um elemento do reino animal, para aumentar a dimensão paradoxal dos trabalhos. A escolha de um bestiário inquietante, de bichos de distintas espécies, já faz parte constitutiva da poética da artista, e reportam para uma cartografia imaginária cujos signos têm bastante de suspeita, de ar desconfortável, até sinistro, como se as imagens estivessem no ponto de anunciar alguma coisa não tão confortável. Há um ruído surdo neste silêncio que parece se anunciar como catástrofe, como acontece na iminência de algum acontecimento por vir. As imagens, os bichos escolhidos, concretamente, a série de repteis, aves, mamíferos, crustáceos, ... é uma animália que há tempo está fora do paraíso –como nós. Deste modo, o anúncio destes backlights são uma iconografia anti-publicidade cujo questionamento formula uma pergunta clássica: onde estamos?, em que mundo vivemos? (escondendo aparentemente as outras, de onde viemos, para onde vamos...).      

III / A anomalia visual destas atopias é geradora de inquietude, pois a sua ambigüidade está gerada pela suspeita de que estamos diante de algo alterado. Neste sentido, as imagens iconográficas da artista são altamente suspeitas, semanticamente, seu alvo parece ser a produção de inquietude.  Assim, o analise de Umberto Eco acerca do inquietante se orienta para o mergulho no incerto ou feio de situação: “Freud admite, com Jentch, que o inquietante se apresenta sem dúvida como antítese de tudo aquilo que é confortável e tranqüilo, mas observava que nem tudo aquilo que é inusitado é inquietante; recordando Schelling, observava que parecia inquietante aquilo que constituía um retorno do recalcado, ou seja, algo esquecido que reaflora e, portanto, um inusitado que reaparece depois da remoção de algo anteriormente conhecido e que havia perturbado seja a nossa infância individual, seja a infância da humanidade (como o retorno de fantasias primitivas acerca de espectros e outros fenômenos sobrenaturais).”[1]

IV / Longe, portanto, da civilização consentida como ilustrada, sempre existiu a natureza com seu promissor estado zero da paisagem, do mundo natural idealizado –algo que, já sabemos, leva caminho da redoma do parque temático–, assim como existiu o reino animal antropomorfizado (onipresente desde as culturas arcaicas até os designs animados ou as tatuagens de hoje). Na literatura, sempre foi fonte primordial de mitologia: Esopo, La Fontaine, Borges, Monterroso, clássicos de uma literatura imaginária, cifraram este gênero como pródigo para paráfrases interculturais, entre-mundos. Há, portanto, uma ironia mordaz nestas fábulas visuais de Thereza Salazar que herdam o espírito de uma híbrida natureza, que parecem conjurar o inegável lado terrível da fábula (tantas vezes vestida com pele infantil em contos do gênero). Há um horror prestes a ser anunciado ou algum evento sobrenatural latejante, em volta... nas quais a paisagem ficcional e os emblemáticos animais soturnos ainda são testemunhas de algum acontecimento provável, em curso.  

Neste contexto, não deixam de ser um sintoma estas imagens, o grau de fabulação que a poética da artista comporta, pois esta filiação também se percebe em seu itinerário[2]: “a apropriação de um imaginário povoado de seres fantásticos, personagens de fábulas, figuras míticas, especialmente as figuras de animais formam meu repertório para construí-los”.[3] Esta vocação por considerar o bestiário como metáfora poética, semântica, sempre foi porosa nas aventuras gráficas que Thereza Salazar vem ampliando em distintos suportes e impressões.     As imagens gráficas trabalhadas nesta ocasião, fotográfica e digitalmente, receberam o tratamento de backlights, outra impressão visual da época.     

V / Por outro lado, a múltipla procedência histórica das imagens, seja de álbuns, compêndios de diversas matérias, atlas e enciclopédias, muitos com a formação e evolução dos planetas e das diversas formas de vida animal, amplifica o gesto da artista, em sintonia com a cultura da imagem que atravessa as épocas transversalmente (entendimento de Aby Warburg, Wlademir Dias-Pino) e, sobretudo, se aproxima dessa porosidade temporal benjaminiana que evita a reificação da história, a continuidade como modelo secular. Cada backlight isolado de Atopias, até com sua ironia iluminada (com seu suporte de luz), é um “objeto de barbárie” (W. Benjamin), uma malicia visual que joga com o extemporâneo, com uma historicidade anacrônica e uma significação sintomática, como aponta Georges Didi-Huberman: “esta temporalidade de dupla face foi dada por Warburg, depois por Benjamin –cada um com seu próprio vocabulário–, como a condição mínima para não reduzir a imagem a um simples documento da história e, simetricamente, para não idealizar a obra de arte num puro momento do absoluto”[4]. O que convoca para outra leitura das imagens –mais a contramão– para o reconhecimento desse tempo dialético –ambíguo– e lógica insólita que há nelas, onde o outrora e o agora se encontram em seu indefinido cristal de tempo.    

Já para fechar estas notas, é impossível negar a reverberação que a palavra atopia produz, o eco afinado que tem com a utopia, apesar de sua rotunda diferença. E este avesso funciona operativamente, como desvio conceitual além de seu território originário[5]. Aliás, como muitas vezes acontece, as acepções do dicionário fazem dele uma ferramenta transversal, quando não poética; neste caso, à primeira acepção de Atopias, como fora de lugar e deslocado, que sugere uma situação rarefeita, espacialmente estranha, confusa, a segue uma segunda também instigante para este trabalho de Thereza Salazar como é a alergia e a doença da epiderme, algo que se pode inferir destas imagens, ainda mais partindo da colagem e do fotomontagem –duas vias artísticas que erosionam e socavam a superfície do que vemos com outras visões acidentadas e que mantém seu estado promissor de linguagem na nossa contemporaneidade–, talvez porque elas abrigam certo desconforto visual, a provocação cultural de uma alergia a determinadas coisas latentes (estipuladas, submersas, categorizadas), o que não deixa de ter seu eco humanista.    

 

Adolfo Montejo Navas 

 

(São Paulo/Foz do Iguaçu, abril de 2014)

 

 

[1] Umberto Eco, “O inquietante”, em A historia da feiúra, Record, Rio de Janeiro, 2007, p. 312

[2] Um mínimo inventário deve registrar diversos exemplos, ainda que dissimiles em sua configuração estética: a Série Sortilégios (2012) na qual se produz um inusitado encontro analógico de formas humanas e animais, Gestos (2012), na qual o bestiário muitas vezes fragmentado dialoga com estruturas geométricas ou fractais da natureza, ou anteriormente, como em Aventuras dos corpos (2011), no qual o universo do circo reúne figurações humanas e animais em visual coreografia. 

[3] Email da artista, 2 de abril de 2014.

[4] Georges Didi-Huberman, Antes del tiempo, Adriana Hidalgo editora, Buenos Aires, 2008, p.143.

[5] Assim como a utopia já foi deslocada de lugar, talvez por entregar-se outrora a operações políticas reducionistas, quanto por ser ultrapassada, infelizmente, pelo imediatismo da falta de espírito ontológico da vida contemporânea, a arte não pode ser outra coisa que utopia, quimera , atopia. Matriz de “Encanto/desencanto” que Angélica de Moraes soube ver na produção da artista oportunamente (Fabulações, Smith Galeria, São Paulo, 2012, p. 6).       

 

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