Fabulações
“A gravura não é uma técnica, é uma linguagem” Joan Miró
Há muito a contemporaneidade apagou as fronteiras rígidas entre campos do saber. Na arte, o sampleamento de conteúdos e processos de criação é ainda mais evidente. Quanto mais a imagem assume o primeiro plano da informação, mais observamos o quanto o território historicamente expansível da gravura amplia seus domínios. Thereza Salazar explora com competência e precisão um ambiente gráfico de natureza tão ambígua e intrigante nos materiais, processos e suportes quanto na temática, construída sobre e sob os conteúdos encantatórios do mito e das figuras míticas. Mito entendido aqui como construção de cultura e, daí, como chave para perceber os índices que recheiam seu estofo e determinam características, simulacros e espelhamentos da chamada vivência real.
Nesta mostra individual, a artista enfoca personagens de fábula e de circo. Já na entrada do espaço expositivo, na parede à direita, é possível observar uma síntese visual de todo clima da mostra: o Malabarista. Com dois pés em cada perna e quatro braços, ele é uma radicalização do estranhamento que remonta ao mundo circense do século 19, quando as malformações congênitas e as deformações corporais causadas por doenças eram disputadas atrações populares, tão ou mais famosas quanto mais divergissem da normalidade estabelecida nos compêndios de anatomia humana.
O Malabarista usa como malabares corpos de bichos, gentes e figuras fabulosas, todas silhuetadas. A silhueta é um dos índices mais antigos da representação e chegou a funcionar como retrato antes da invenção da fotografia. É código cultural. Daí a boa musculatura simbólica dessa obra: o Malabarista pode ser a própria cultura ou uma operação metalingüística situando a ação do artista no contexto da cultura, sendo transformado (deformado?) enquanto manipula conceitos. Corpo como cultura. Arte como produtora do corpo da cultura. Afinal, como observa Thereza, “um corpo tem sua natureza físico-química e sócio-linguística. O corpo é sempre imaginário, porque está inserido no campo da linguagem”.
Há em toda mostra, em igual e irônica medida, agridoces sínteses visuais feitas tanto da matéria dos sonhos quanto dos pesadelos. Um mundo perverso emerge pelas frestas do faz de conta, ajudando a esclarecer sua natureza. Nada resiste ao estilete da dissecação. Não por acaso, a artista usa bastante o estilete para recortar suas figuras. Sua produção é perpassada por um encanto/desencanto, quase assim como acontece à criança quando resolve estripar a boneca ou desmontar o brinquedo para entender como funcionam. Há uma perda e uma destruição que precede a percepção.
Há algum tempo Thereza vem utilizando seres fantásticos e personagens de fábulas para armar seus trabalhos. Enfoca especialmente os bichos. Estes, desde Esopo e La Fontaine, são úteis tanto na demonstração de códigos de comportamento como no clima de terror da literatura infantil, que herdamos de muitos séculos. A reflexão da artista sobre a natureza predatória da espécie humana ficou bem evidente em 2008, quando criou recortes em madeira de silhuetas de animais caçando e matando seus inferiores na cadeia alimentar: a águia capturando a serpente, o lobo abatendo o pássaro, etc... Alguma dúvida de que esse circuito de signos se adapta à perfeição a nossa selva urbana e aos territórios de caça dos escritórios e demais locais de disputa de despojos e troféus sangrentos?
Vale lembrar que boa parte das anatomias impossíveis dos bichos mitológicos que conhecemos da literatura foi imortalizada em gravuras e que estas surgiram especialmente para esconjurar o desconhecido. Surgiram especialmente durante o período dos grandes descobrimentos marítimos do século 16, quando os continentes ignotos eram também espaço para a imaginação desatar-se em invenções exóticas.
O pensamento gráfico anima todas as peças da mostra e salta, em relevo, na série Aventura dos Corpos, recortes em madeira que remetem ao ambiente circense tanto como palco de espetáculo singelo e prazeroso como (se observarmos desde os bastidores do fenômeno) as armadilhas de fios a delimitar a ação dos personagens e estabelecer (exigir?) a direção de seus esforços. Um resultado de movimentos que parece decupar e somar todas as quedas, contusões e fraturas que existem por trás de um belo salto no trapézio, por exemplo. Ou na existência, se quiserem a metáfora.
Como no processo tradicional de gravar uma imagem na madeira (xilogravura), Thereza escavou em profundidade na temática do circo. Buscou não só o resultado encantatório mas também o extenuante e sacrificial que o envolve. Sem deixar de reverenciar, como sempre faz em sua obra, o fascínio ancestral do mito, arcabouço do projeto civilizatório. É no mito, como bem a artista observa na série Sortilégios, que o ser humano procura medir-se, para conferir a altura e envergadura de seus sonhos.
A quimera, animal mitológico e síntese de várias espécies, é também sinônimo de utopia. Na atualidade, quando a dimensão heróica e as utopias já não têm espaço, é a ironia e a dissecação a frio da matéria dos sonhos que pode nos apontar o território do possível. Thereza Salazar nos ajuda a refletir sobre esses ásperos caminhos.
Angélica de Moraes