Metamorfose, abertura: uma breve apresentação de Thereza Salazar
Nada conservava sua forma,/ cada coisa opunha-se à outra, pois num mesmo corpo/ o frio guerreava o quente, o húmido lutava contra o seco,/ o mole com o duro, o peso com a ausência de peso.
Ovídio, Metamorfoses, livro I.
Thereza Salazar é uma artista brasileira que possui uma obra intrigante, metamórfica. Metamórfica não por tema ou motivo, mas no sentido de tornar as imagens abertas. A abertura criada por Thereza está na ordem de um encadeamento de imagens que o seu trabalho suscita, um movimento contínuo que espero minimamente tentar acompanhar aqui. No desafio do próximo passo – mesmo que existam vestígios na suas imagens anteriormente constituídas –, Thereza cria uma espécie de encadeamento: mapas celestes se aproximam da noite no mercado municipal de São Paulo, de tais mapas, como se a constelação criasse carne, serpentes se entrecruzam na matéria das lantejoulas brilhantes formando brasões insólitos. Assim como se esse mapa uma vez celeste, após serpentear no brilho de brasões, ele se torna, literalmente, “um mapa de dentro”, cujas ramificações vegetais se tornam escrita, imagem. Resumidamente, esses são alguns trabalhos desenvolvidos pela artista que parecem ser um único trabalho, um desenho em vias de uma metamorfose, um traço contínuo.
Esse movimento contínuo transita por reinos (vegetal, animal e mineral) e parece trair o próprio estatuto da capacidade de figuração que nele está embutido. Mesmo que sejam imagens nítidas, demarcadas, existem nelas um resíduo medievo – além de outras medidas renascentistas, écarts, cujas canônicas medidas vitruvianas não conseguiram apagar – tudo isso faz parte do universo de pesquisa de Thereza. A artista parece deslocar levemente o estatuto da imagem advindo de algumas discussões de Michel Foucault em As palavras e as coisas, fato que se apresenta como rasgo à nossa episteme, onde a função do visível é significar o invisível.[i] Nesse aspecto, Thereza parece ter um profundo respeito pelo invisível, pois em suas imagens existe uma zona, um limite até onde ela vai – que não se encerra na borda do desenho –, mantendo uma margem, uma fronteira possível que torna, em alguns momentos, desnecessário o olhar, próprio de uma linha do desenho que se perde. Parece que nesta perda (ou o abrir mão do olhar, um momento de re-garder[ii]) existe um segredo que a artista guarda e que, perante isso, devemos olhar com uma desconfiança para as suas imagens. Sim, suas imagens estão abertas. Entretanto, reside nessa abertura o que existe de potência em seu segredo. Do que se perde ao compor uma imagem, das leituras que ressoam sobre o seu corte e seu desenho. De tudo o que está povoado de prodígio, de mito, de herético que uma iluminura medieval (ou um bestiário) guardava como limite porque era preciso mostrar para fazer crer. O visível tanto atestava o invisível como o conduzia até ele e o apagava. Desconfio que suas imagens não restrinjam um invisível, mas que fazem dele pequenas fatias do real, “irrealidades visíveis”[iii], a reivindicação de Borges que Thereza atentamente escuta.
São desenhos: Eis o traço de Thereza que segue sempre fruto de um contato com distintos materiais. Pois, além da linha pictórica, essa linha se estende pelos filetes do corte que traçam silhuetas, sombras, volumes, mas que mantém junto à linha o gesto que foge a uma representação mais imediata. Ao destituir de transcendência os desenhos de Thereza Salazar, penso que neste momento não é mais preciso recorrer à simbologia ou iconologia medieval-renascentista para “explicá-los”, mesmo que ela, de alguma maneira “sobreviva” em seus desenhos. Ainda nesse limiar, o que mais existe nestes desenhos talvez seja o rumor, um som e não outras imagens-origem, pois o que parece são que elas saíram de outra fonte: de narrativas, de histórias contadas, de rumores de uma época que praticamente foi apagada por uma escrita da história da arte que sincroniza as imagens em linhas sócio-temporais.
Em uma nova série de arquivos para pensar o circo em seu trabalho, a artista parece não ressaltar o que entendemos pelo que é freak, as anormalidades e prodígios que foram um refugo (ou écarts) da Idade Média aceito no Renascimento ainda que representados de maneira harmônica nas pranchas de Regnault, mas sim ao que significa à literatura fantástica – no assombroso âmbito da América Latina – algo mais discreto, mas que possui seu traço de anormalidade, como ressaltou o crítico argentino Nicolás Rosa ao afirmar que o ambidestro já era uma antecipação epistêmica da literatura fantástica.[iv] São problemas de saber como esses que encontramos nos seus desenhos.
Esse movimento contínuo da linha, dito de uma maneira mais precisa pode ser acompanhado em três individuais da artista, todas em São Paulo, cidade onde vive. Em 2003, Passa-tempo/Tempo-passa, em 2005, Mapa de dentro e em 2008, Domínios. O movimento da linha passa pela serpente se metamorseia em linha vegetal para voltar ao mundo animal, desta vez, no golpe certeiro do predador quando apanha a vítima. Uma relação que sempre ressalta uma imanência que não põe ordem entre devorador e devorado – sobre esse aspecto, as reflexões de Georges Bataille sobre a animalidade e a imanência são extremamente pertinentes, pois segundo Bataille, em Teoria da Religião, entre presa e predador não existe relação de subordinação, de dependência como acontece com objetos, com o homem.[v] Essa questão é muito precisa para pensar a exposição Domínios. Assim, no jogo dialético entre representar e não representar, entre corpo e silhueta, pela qual a artista abre um buraco para perdermos o olhar, existe o fio da linha pela qual segue Thereza – para nos orientar em seu labirinto ou para enganar o espectador-pretendente? – e ela segue, percorre com inquietação os contornos da forma, o que faz com que fique impossível prever o seu destino: de que mundo virão as próximas imagens?
Eduardo Jorge
[i] FOUCAULT, Michel. As palabras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[ii] NANCY, Jean-Luc. La mirada del retrato. Buenos Aires: Amorrortu, 2006a.
[iii] BORGES, Jorge Luis. “Avatares da Tartaruga” In: Obras Completas 1. São Paulo: Globo, 1998. p. 273-278.
[iv] ROSA, Nicolás. “Una semiología del mundo natural”. In: Relatos críticos. Cosas animales discursos. Buenos aires: Santiago Arcos, 2006b. p. 171-241.
[v] BATAILLE, Georges. “La animalidad”. In: Teoría de la religion. Madrid: Taurus, 1981. p. 21-29.