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Fantasmas - Alegorias Contemporâneas

 

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    “Acho inútil e fastidioso representar aquilo que é, porque nada daquilo que existe me satisfaz. A natureza é feita, e prefiro os monstros de minha fantasia à trivialidade concreta.”*

 

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Alguns apontamentos sobre a exposição Fantasmas de Thereza Salazar. As imagens (figuras) dominantes são originariamente de um imaginário précientífico (época de uma ciência pré-abstrata contaminada de folclores, animismos, autômatos, mecanismos...). Que ainda se tornam mais excêntricas em jogos, encontros e combinações onde se atualizam e adquirem autonomia de suas proveniências. Encontros arbitrários controlados tanto quanto controlada a configuração como se apresentam: limpa, nítida, cuidadosa... Onde temos um procedimento formalmente predefinido mas que de fato não domestica ou satura significados ou as limita a serem apenas criaturas cênicas no choque entre tais máquinas, animais e plantas exóticas e anacrônicas. Numa primeira abordagem podemos achá-los cômicos, infantis... como uma provocação... da contradição de uma crueza descritiva (própria de manuais, tratados, compêndios, etc.) e de uma delicadeza inusitada em seus pelicanos pantagruélicos, serpentes mesmerizadas, motores desfuncionais, traquitanas alquímicas, poliedros voláteis... do “Belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecção, de uma máquina de costura e um guarda-chuva!” de Lautréamont. Há, ao meu ver, menos que uma experiência de rearticulação de significados entre imagens de origens e intenções diferentes, algo das pesquisas de Aby Warburg, do que um exercício (jogo) mais gratuito de sedução de algo que nos motiva a uma ressignificação em seus encontros (composições) e ao mesmo nos frustra nesse ímpeto. Ainda mais interessante pois amortece nossa dependência em doarmos significado a tudo de forma a usufruirmos de nossa máquina de produção de sentido com uma avalanche de referenciais. Estamos aqui em um desafio onde as fabulações possíveis falham, inexequíveis. Me apropriando do termo “palavra-valise” que se refere à fusão de palavras por aglutinação formando um outra que não necessariamente teria um significado fechado onde se perde parte das suas formas originais (penso aqui no seu uso em Lewis Carroll e também na Quimera também uma formação hibrida de diversos animais) e do termo “ palavra esotérica” que é uma palavra sem um sentido determinado que serve para cumprir uma falta, um vazio, que encontramos em nossos discursos (como exemplos: isto, negócio, treco, coiso, troço, trem, tipo, etc. onde seus sentidos são o que quer que se queira). Ambos termos se referem a satisfação de uma carência na linguagem, ou (o que acho importante neste contexto) a possibilidade de transbordamento e excesso de possibilidades de combinações possíveis, o que paradoxalmente se cumpriria em palavras que são seu próprio sentido e palavras nonsense (absurdas). Agora ousaria pensar nessas possibilidades de jogos de construção (ou destruição) de sentidos e aplica-las aos trabalhos de Thereza Salazar, pensando em algo como “alegorias esotéricas”, que não nos levaria por um caminho onde especularíamos sobre significações latentes, aquilo que “pode ser”; mas apenas passearíamos livres através de suas virtualidades... Como um rébus não linear e irresolúvel, o jogo em que se juntam figuras em sequência e que a partir da soma ou relação das sonoridades de seus nomes formamse palavras, frases... Mas ao mesmo tempo são também construídos a partir de reunião de elementos decomponíveis, determináveis isoladamente, por exemplo: um plicômetro, um pelicano, um poliedro... construções, composições a partir de figuras autônomas (apesar de carregarem entre si um anacronismo, uma textura similar, uma origem em um passado comum...). Quando pensei na famosa citação de Lautréamont, o que penso ser o mais importante do trecho é exatamente o: encontro fortuito. Já que ponto instigante no trabalho de Thereza seja que são encontros imprevisíveis porém de elementos de um universo plástico similar, o que intensifica a ansiedade que significá-los em uma narrativa comum. Fazendo com que se distancie das construções surrealistas cujo o interesse era que a partir do jogo com elementos dispares... distantes... jogos com disjunções onde o acaso terminaria em um discurso outro, de alguma forma compreensível, analisável ao menos. Os trabalhos expostos formam um recorte de sua produção que trata dos encontros e desencontros em uma estratégia que perturba as construções de sentido; onde nos vemos forçados ao exercício confuso de uma contemplação de algo que a princípio não remete a esse tipo de abordagem. Mantêm algo enigmático que nos faz sentir e desejar que possam assim ser solucionados. Que em detrimento as formações por aglutinação ou composição... seriam mesmo espécie de “alegorias esotéricas”... coisos, troços, istos... fascinantes por significarem apenas a si próprios...

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Tiago Santinho, Agosto 2018

 

*BAUDELAIRE, Charles: Charles Baudelaire. Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores. Nova Aguilar. Rio de Janeiro. 1995.

 

 

 

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