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Pequeno Inventário Acrobático

 

O escritor Caio Fernando Abreu, em sua busca inquietante por ver beleza e felicidade em uma vida que lhe parecia angustiante, escreveu que odiava circos: “Aliás, odeio tudo que me encanta e depois vai embora”. Esta sensação, que nos é tão familiar, deve-se talvez porque nos custa entender que o lugar do circo é onde ele está e para onde ele vai. Seu endereço é o provisório e mutante. Tal condição nômade e viajante parece saudável ao 

respeitável público. Imagine se pudéssemos conviver de perto com tudo que integra a atmosfera fabulosa de um circo: passear pela cidade com os contorcionistas, conhecer o mágico e seus truques, discutir sobre o medo e a coragem do homem bomba, acariciar o leão feroz, saber a fundo como funciona o globo da morte, tomar um café com a bailarina que voa sustentada por seus dentes, perceber o que sofre e “com o que sonha” a mulher barbada... 

 

Tudo e todos que estão sob a lona guardam uma aura de estranheza, de mistério e, ao mesmo tempo, de encantamento. Será que conhecer suas verdades (se é que existem) desmistificaria o espetáculo e cairíamos num completo abismo de obviedades? Como em muitas instâncias e ficções da vida, o circo é, quem sabe, um desses lugares que não se precisa conhecer a fundo, não é necessário adentrar os bastidores e romper os limites da cortina. Já que um tanto do fascínio que sentimos, não só quando criança, por seus personagens, esquisitisses e feitos quase impossíveis reside muito nas nossas frestas do desconhecido, onde estão as coisas incategorizáveis e incompreensíveis, onde há afeto para as anormalidades, ainda que a vida fosse muito mais interessante sem todas as convenções.

 

Este é o micro/macrocosmos de Thereza Salazar: o circo, seus personagens e a estranheza dos acontecimentos que só se passam ali – entre a exclamação e uma espécie de incômodo poético. A artista coleta, edita e monta cenários e cenas circenses a partir de um imenso arquivo de imagens que acumula. Em sua pesquisa, debruça-se sobre a potência da colagem e sobre aglomerações de personagens que desempenham ações teatralizadas. Thereza evidencia seus gestos e a plasticidades dos corpos a partir de um desenho de silhuetas. “Me interessa a síntese e não a figuração, a cópia, a exatidão”, afirma a artista. 

 

Assim, parece haver poros em seus desenhos, incompletudes formais propositadamente calculadas, para que adentremos tal ambiente e nesse percurso reinventemos o espetáculo, a sequência das cenas, a sensação que passa o artista circense na arena. Tais recursos da artista estão presentes em trabalhos como “Malabarista” (2012) – uma espécie de ser mitológico de quatro pernas, que equilibra animais, criaturas, homens, bichos antropomorfos – e como os desenhos da “Série sortilégios” (2012) – personagens do circo cujas posturas são associadas às anatomias de animais (cavalo marinho, dragão, porco espinho).

 

A colagem e o usufruto de imagens descritivas, quase elementares, ganham um adensamento conceitual e fictício quando a artista constitui aproximações visuais em uma narrativa que nos lembra uma fita de negativo de um filme. No mural “Polytheama”, todos os personagens estão ali encarnando vivamente suas tarefas e estranhezas, todos ao mesmo tempo: mesclando-se, contaminando-se, hibridizando-se, sem começo ou fim. Desta imagem foi retirado tudo que tem qualquer obrigação com a realidade. São coisas vistas e recontextualizadas em misturas de escalas, de planos, de volumetrias e de possibilidades de convivência. 

 

Mas, ora, tudo é possível. Em “Pequeno inventário acrobático”, a forma, enquanto desenho, é um processo moldável, articulável e assim se apresenta tanto no fazer de Thereza Salazar como para quem vê seus projetos no espaço. Disto, podemos perceber que tal inventário em sua narrativa como lugar e espacialização do desenho ocorre como o que Deleuze nos apresenta como “Fabulação”: uma condição ambivalente, sem oposto entre verdade e ficção, realidade e imaginação. Estes pólos não são requisitos para Thereza Salazar. Pois bem, “Pequeno inventário acrobático” parece nos dizer para nos livrarmos das prisões do real e para que nos reinventemos em nossas possibilidades fabulosas.

 

 

Galciani Neves

outubro/2014.

 

 

 

 

 

 

 

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